As lógicas e a vocação do território latino-americano ao longo das últimas décadas. Conheça o contexto político que faz surgir um novo momento e uma nova identidade política que busca fortalecer identidades, direitos e a democracia.
Para começar a entrar nessa outra história possível da América Latina, precisamos contar um pouco sobre a velha não-tão-conhecida história. A intenção desse capítulo é apresentar um olhar mais subjetivo para entender por que é nesse contexto arcaico e ultrapassado que emergem as novas possibilidades e sonhos de coletividade.
Quem sabe, permitir um olhar generoso a uma história que se fez com tanta dor e vidas perdidas, mas gerou um povo resistente, persistente e criativo.
Nenhum sistema é tão perfeito e fechado que não tenha brechas para impedir que revolucionários e disruptivos nasçam, cresçam e floresçam.
Dos encontros de povos e toda sorte de acreditação e de ritos, não se pensa a América Latina sem recorrer ao imaginário fantástico, seus personagens, paisagens e o que aconteceu ao longo dos tempos.
Somos um costurado de todas as cores, de todas as texturas, de cheiros, de gostos e de ritmos.
Essa pesquisa é sobre essa terra e essa gente. Entretanto, antes de acontecer na realidade, a América Latina é uma invenção de muitas imaginações que se encontraram antes de todas e todos nós.
A vocação dessa terra não é para poucos. Se somos o palco da imaginação do mundo, também somos o palco das disputas, guerras, violências e autoritarismos.
Já faz tempo que os povos vivem no fogo cruzado, seja pelos violentos processos de colonização que existiram, seja quando uma parte do povo acreditou que a outra parte estava ao seu lado, e não estava.
Ou ainda, de um lado, centralizadores do poder e, do outro, sonhadores de uma democracia que liberta cada um de nós.
Por exemplo Canudos, que imaginou uma cidade inventada, livre de sua própria nação, nascida no meio de um sertão que nunca virou mar. Ou tantos outros exemplos – Zapatas, Allende, Guevara – que disputaram e disputam essa história.
Foi contra “imaginações” que foram construídas as formas de violência de Estado que até hoje habitam esse território e tornaram seus habitantes reféns de um novo conto: o da democracia exercida por meio de uma política institucional, patriarcal e controladora.
Desimaginar é retirar o direito dos indivíduos de criarem novas realidades.
É uma lógica de poder que acontece por meio de ações de repressão ideológica, física, institucional e política que nos impede de imaginar e exercer a coletividade. Desimaginar a política é o processo de deixar de sonhar, pensar e construir o coletivo.
Sem compreender a política como ferramenta de transformação, os latino-americanos pouco a pouco foram deixando de acreditar num território e identidade conectados.
Sociedade fragmentada
O produto dessa lógica é uma sociedade fragmentada, reflexo de um Estado inacessível.
Dividida pela visão “nós e eles”, afasta-se da ideia de que é possível criar a sociedade a partir de suas diferentes manifestações.
Esse sistema opera segundo a estratégia de que é preciso “dividir para conquistar”, ganhando controle e poder através da fragmentação, dificultando a reunião de grupos menores.
O resultado desse processo é o isolamento de grupos e indivíduos, um tecido social em retalhos, totalmente descosturado.
A América Latina é um continente tão fragmentado, desde o físico ao pensamento.
Ginna, Colômbia
É a interação entre as diferentes unidades sociais e seus indivíduos, como: família, comunidades e instituições. A relação entre elas é o que dá forma à sociedade.
Um tecido social saudável proporciona confiança e cuidado entre os indivíduos, que compartilham identidade – cultura ou histórias comuns – e gera estruturas voltadas à tomada de decisões coletivas.
Muito do que acontece hoje tem a ver com a falta de tecido social. Há muitos fatores que explicam isso: desde que se parou de ensinar educação cívica nas escolas até uma sociedade absolutamente marcada pelo consumo e pelo individualismo. Eu sinto que uma grande parte dos problemas que temos hoje, no nível político, social e todo conflito, tem a ver exatamente com a falta de saber como construir um tecido social.
Juan, Chile
– Uma outra América Latina parece inalcançável porque nos impedem sistematicamente de imaginá-la.
Como se sustenta essa lógica?
A manutenção da desimaginação política é sustentada por dois grandes pilares interligados e percebidos ao longo da nossa história mais recente.
visíveis & invisíveis
como regulador de comportamento
O resultado é uma democracia
para poucos e insuficiente.
A emergência da imaginação política
Uma combinação de fatos históricos cria condições para resgatar o imaginário político latino-americano.
As décadas de 50 e 60 foram marcadas por ditaduras militares na América Latina, e os anos 80 e 90 pela retomada da democracia. Ainda que superficial, o sistema democrático reabre uma brecha para a imaginação política.
Desde o surgimento da internet, a sociedade força e testa os limites da democracia, impulsionando a sua atualização para os desafios e oportunidades do século 21.
Entre 1979 e 1990, mais de uma dezena de países latino-americanosviveu a transição democrática. Parte dessa motivação provém de um contexto econômico mundial: o neoliberalismo e a globalização são incompatíveis com os regimes militares nacionalistas e autoritários.
Por outro lado, cidadãos lutaram pela democracia em seus países. A jornada de democratização foi marcada por lutas, retrocessos e avanços, tensões, resistências e negociações que continuam até os dias de hoje – e que devem continuar.
O sistema foi implementado sem adotar uma cultura democrática, sem mexer na velha lógica. O resultado é a manutenção das elites e seus privilégios, em uma democracia ainda restrita a poucos.
Nós temos mais de 30 anos de recuperação democrática e, no entanto, a democracia não pôde resolver os problemas mais simples que a cidadania tem.
Margarita, Argentina
Acredito que a transição de um sistema ditatorial para um sistema democrático é uma mudança muito forte, da qualidade de cidadania, de como eu concebo minha cidadania em relação ao meu interlocutor, que é supostamente meu representante. Temos que deixar de ser um adolescente que se queixa de tudo e passar a ser um adulto que diz: nós realmente temos que deixar e sacrificar certas coisas, renunciar a outras e tomar decisões.
Pablo, Chile
Sem adotar a cultura democrática e seus princípios, a democracia na região se restringe ao momento das eleições, apresentadas como a materialização do sistema democrático.
A busca pela participação política para além das eleições, e uma democracia que vença os velhos hábitos formam o processo de amadurecimento do sistema e, claro, de seus cidadãos.
São Estados-nação muito limitados. Ou seja, somos do Ocidente, mas temos uma modernidade que eu chamo “modernidade inacabada”. Não houve um sistema de distribuição de direitos para toda a sociedade. Então vieram uma modernidade e uma democracia muito limitadas, deixando negros, indígenas, mulheres, jovens do lado de fora.
Matias, Argentina
A rede resgata possibilidades de imaginar um futuro diferente e, portanto, uma atuação política em que o cidadão descobre sua própria voz e faz eco com outras vozes, organizando-se ao redor de novos temas, numa lógica colaborativa.
Atualizamos a democracia através do uso de redes e TICs como ferramentas de participação cidadã.
Juan, Mexico
Não consigo pensar num cidadão ativo ou num político ativo sem a tecnologia. Inclusive como um meio para poder tornar as informações mais ágeis e construir narrativas que antes eram muito monopolizadas.
Cecília, Brasil
A ousadia da juventude pega os governos de surpresa e cria uma onda poderosa que reverbera nas ruas e nas redes, atuando de forma mais destemida, direta e transparente.
Em 2011, o movimento estudantil universitário organizado vai às ruas contra o sistema de educação, principalmente superior. Esse momento inspira outros movimentos como o Revolución Democratica, Autonomistas e Esquerda Autónoma e faz surgir as 3 principais lideranças eleitas como candidatos independentes a deputados federais. Os movimentos de onde vieram se formalizam como partidos e, em 2017, constroem a Frente Amplia de Esquerda, que elege 21 parlamentares, sendo 20 deputados e um senador, além de promover uma candidata à Presidência (Beatriz Sanches) que fica em 3º lugar.
Em rechaço à visita do então presidente Peña Nieto a uma universidade e ao contra-ataque de Peña dizendo que aquela manifestação se tratava de uma articulação organizada pelos partidos da esquerda, surge em 2012 o movimento estudantil Yo Soy 132, que mobiliza a rede e leva milhares de pessoas às ruas. Esse processo ajudou a sancionar a reforma política, que permite maior participação política, como a possibilidade de serem lançadas candidaturas independentes. O Wikipolítica resolve se configurar como movimento que apoia as candidaturas independentes e elege Pedro Kumamoto em 2014 para deputado. Em 2018, ele é candidato ao senado.
Em junho de 2013, as manifestações contra o aumento da passagem de ônibus contaminam grande parte das ruas das grandes cidades num levante que mobiliza todos os lados da sociedade, não só a esquerda. A direita insatisfeita desperta, revogando seu direito de expressão. Em 2016,o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e os constantes casos de corrupção fazem emergir a necessidade da renovação política como agenda nacional. Movimentos como a Bancada Ativista, em São Paulo, e Muitxs, em Belo Horizonte, iniciam suas narrativas seguidos por outros movimentos de renovação como o Agora, Acredito, Renova etc.
Para reverter o quadro de mais de 70% dos uruguaios favoráveis à redução da maioridade penal, jovens estudantes se mobilizaram para debater nas universidades, em casa e na internet. e criaram a maior manifestação no país. Em 2014, conseguem impedir a medida, o que se torna uma grande conquista do movimento e fortalecimento da sociedade civil – para depois aprovar e mobilizar a aprovação de outros Direitos Civis, como a liberação da maconha e o casamento homoafetivo.
Em junho de 2015, uma notícia sobre o feminicídio de uma garota de 15 anos em Santa Fé mobiliza as pessoas rapidamente no twitter e escala para as ruas de forma atípica e orgânica, reunindo mais de 300 mil pessoas de diferentes classes sociais, idades e lugares nas ruas empunhando a bandeira contra o feminicídio. O movimento Ni Una Menos resgata a lei 26.485 – uma lei que protege a vida das mulheres, apesar de ainda não ter impacto – além de se espalhar por todo o território, em todos os países da América Latina.
Quando o presidente resolve explorar petróleo no solo do parque Yasuni (que possui a maior biodiversidade do país, além de ser uma reserva indígena), um movimento jovem de vários coletivos ambientalistas faz a coleta de mais de 600 mil assinaturas para pedir um referendo que impeça a exploração do parque. Apesar do governo não acatar o referendo e tentar exercer controle sobre os coletivos, o impacto dessa mobilização ambiental e cívica é enorme e conta com a participação da sociedade em peso.
Após a denúncia de corrupção que envolveu o presidente e sua vice, a sociedade civil pede pela renúncia de ambos. A importância desse fato se dá por acontecer em um país com histórico de violência, perseguição política e conflito armado, ou seja, numa sociedade que sempre viveu à sombra do autoritarismo. Um evento de facebook chamado RenunciaYA reúne 25 mil pessoas e consegue a renúncia da Presidência, fazendo despertar uma geração que também busca entrar na política. É simbólico porque o despertar desse poder político acontece nos jovens, num país onde as pessoas sempre tiveram medo de se destacar e ocupar o poder público, e contamina todas as gerações da sociedade.
Em 2015, o governo faz uma chamada sobre o acordo de paz com as FARC, enquanto a oposição faz a disseminação de fake news e propaganda política, que acaba polarizando a sociedade em uma questão que não pode ser simplificada. O acordo de paz não passa e os jovens, através da tristeza e decepção, promovem reuniões e debates, que acabam se concentrando na Praça Bolívar, sede do governo central, e ocupam a praça, fazendo pressão para que o acordo siga. A partir disso, o acordo é mantido. A insurgência se dá a partir de jovens que tinham medo de se envolver na política e, nesse cenário, começam a conversar, se envolver e ocupar a política para assegurar Direitos Civis e Humanos.
Através do referendo 21F, Evo Morales consulta a sociedade sobre sua reeleição pela 4ª vez. Os jovens se manifestam contra e não permitem a aprovação da medida, pois entendem que, apesar dos avanços do governo, não dar chance a uma nova eleição pressupõe um sistema ditatorial e é preciso haver alternância de poder. Mais uma vez, a juventude toma a frente para ressignificar o sistema democrático, inclusive para ocupar o poder político. Os movimentos FUR (partido que quer ter candidaturas em 2019) e OTRA ESQUERDA POSSIBLE fazem surgir novas esquerdas, na busca de uma democracia mais justa.
O presidente eleito declara em sua campanha que não haverá reeleição. Porém, no fim de seu mandato, consegue fazer um arranjo político e jurídico para se reeleger, o que provoca, em março de 2017, um levante popular nas ruas. Mesmo assim, no dia seguinte a medida é aprovada. Milhares de pessoas, representantes de todas as classes sociais, idades e gêneros vão às ruas num levante violento contra essa manobra, ocasionando a desistência da reeleição por parte do presidente.
O surgimento e a materialização de um novo perfil comportamental que demonstra esse novo pensar e fazer política nos territórios: suas ações, estratégias, princípios, mentalidade e valores.
A definição e visão de inovação política neste contexto, os principais desafios e as ferramentas para que este ecossistema permaneça, realize e transforme as instituições e sociedade.