Pulso 2018-10-25T20:30:33+00:00

As lógicas e a vocação do território latino-americano ao longo das últimas décadas. Conheça o contexto político que faz surgir um novo momento e uma nova identidade política que busca fortalecer identidades, direitos e a democracia.

Para começar a entrar nessa outra história possível da América Latina, precisamos contar um pouco sobre a velha não-tão-conhecida história. A intenção desse capítulo é apresentar um olhar mais subjetivo para entender por que é nesse contexto arcaico e ultrapassado que emergem as novas possibilidades e sonhos de coletividade.

Quem sabe, permitir um olhar generoso a uma história que se fez com tanta dor e vidas perdidas, mas gerou um povo resistente, persistente e criativo.

Nenhum sistema é tão perfeito e fechado que não tenha brechas para impedir que revolucionários e disruptivos nasçam, cresçam e floresçam.

Dos encontros de povos e toda sorte de acreditação e de ritos, não se pensa a América Latina sem recorrer ao imaginário fantástico, seus personagens, paisagens e o que aconteceu ao longo dos tempos.

Somos um costurado de todas as cores, de todas as texturas, de cheiros, de gostos e de ritmos.

Essa pesquisa é sobre essa terra e essa gente. Entretanto, antes de acontecer na realidade, a América Latina é uma invenção de muitas imaginações que se encontraram antes de todas e todos nós.

Foto: Renato Santana

A vocação dessa terra não é para poucos. Se somos o palco da imaginação do mundo, também somos o palco das disputas, guerras, violências e autoritarismos.

Já faz tempo que os povos vivem no fogo cruzado, seja pelos violentos processos de colonização que existiram, seja quando uma parte do povo acreditou que a outra parte estava ao seu lado, e não estava.

Ou ainda, de um lado, centralizadores do poder e, do outro, sonhadores de uma democracia que liberta cada um de nós.

Foto: Rich Lam / Getty Images

Por exemplo Canudos, que imaginou uma cidade inventada, livre de sua própria nação, nascida no meio de um sertão que nunca virou mar. Ou tantos outros exemplos – Zapatas, Allende, Guevara – que disputaram e disputam essa história.

Foi contra “imaginações” que foram construídas as formas de violência de Estado que até hoje habitam esse território e tornaram seus habitantes reféns de um novo conto: o da democracia exercida por meio de uma política institucional, patriarcal e controladora.

Desimaginar é retirar o direito dos indivíduos de criarem novas realidades.

É uma lógica de poder que acontece por meio de ações de repressão ideológica, física, institucional e política que nos impede de imaginar e exercer a coletividade. Desimaginar a política é o processo de deixar de sonhar, pensar e construir o coletivo.

Sem compreender a política como ferramenta de transformação, os latino-americanos pouco a pouco foram deixando de acreditar num território e identidade conectados.

Sociedade fragmentada

O produto dessa lógica é uma sociedade fragmentada, reflexo de um Estado inacessível.

Dividida pela visão “nós e eles”, afasta-se da ideia de que é possível criar a sociedade a partir de suas diferentes manifestações.
Esse sistema opera segundo a estratégia de que é preciso “dividir para conquistar”, ganhando controle e poder através da fragmentação, dificultando a reunião de grupos menores.

O resultado desse processo é o isolamento de grupos e indivíduos, um tecido social em retalhos, totalmente descosturado.

A América Latina é um continente tão fragmentado, desde o físico ao pensamento.
Ginna, Colômbia

É a interação entre as diferentes unidades sociais e seus indivíduos, como: família, comunidades e instituições. A relação entre elas é o que dá forma à sociedade.

Um tecido social saudável proporciona confiança e cuidado entre os indivíduos, que compartilham identidade – cultura ou histórias comuns – e gera estruturas voltadas à tomada de decisões coletivas.

Muito do que acontece hoje tem a ver com a falta de tecido social. Há muitos fatores que explicam isso: desde que se parou de ensinar educação cívica nas escolas até uma sociedade absolutamente marcada pelo consumo e pelo individualismo. Eu sinto que uma grande parte dos problemas que temos hoje, no nível político, social e todo conflito, tem a ver exatamente com a falta de saber como construir um tecido social.
Juan, Chile

– Uma outra América Latina parece inalcançável porque nos impedem sistematicamente de imaginá-la.

Como se sustenta essa lógica?

A manutenção da desimaginação política é sustentada por dois grandes pilares interligados e percebidos ao longo da nossa história mais recente.

visíveis & invisíveis
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como regulador de comportamento
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O resultado é uma democracia
para poucos e insuficiente.

A emergência da imaginação política

Uma combinação de fatos históricos cria condições para resgatar o imaginário político latino-americano.

As décadas de 50 e 60 foram marcadas por ditaduras militares na América Latina, e os anos 80 e 90 pela retomada da democracia. Ainda que superficial, o sistema democrático reabre uma brecha para a imaginação política.

Desde o surgimento da internet, a sociedade força e testa os limites da democracia, impulsionando a sua atualização para os desafios e oportunidades do século 21.

Entre 1979 e 1990, mais de uma dezena de países latino-americanosviveu a transição democrática. Parte dessa motivação provém de um contexto econômico mundial: o neoliberalismo e a globalização são incompatíveis com os regimes militares nacionalistas e autoritários.

Por outro lado, cidadãos lutaram pela democracia em seus países. A jornada de democratização foi marcada por lutas, retrocessos e avanços, tensões, resistências e negociações que continuam até os dias de hoje – e que devem continuar.

O sistema foi implementado sem adotar uma cultura democrática, sem mexer na velha lógica. O resultado é a manutenção das elites e seus privilégios, em uma democracia ainda restrita a poucos.

Nós temos mais de 30 anos de recuperação democrática e, no entanto, a democracia não pôde resolver os problemas mais simples que a cidadania tem.
Margarita, Argentina

Acredito que a transição de um sistema ditatorial para um sistema democrático é uma mudança muito forte, da qualidade de cidadania, de como eu concebo minha cidadania em relação ao meu interlocutor, que é supostamente meu representante. Temos que deixar de ser um adolescente que se queixa de tudo e passar a ser um adulto que diz: nós realmente temos que deixar e sacrificar certas coisas, renunciar a outras e tomar decisões.
Pablo, Chile

Sem adotar a cultura democrática e seus princípios, a democracia na região se restringe ao momento das eleições, apresentadas como a materialização do sistema democrático.

A busca pela participação política para além das eleições, e uma democracia que vença os velhos hábitos formam o processo de amadurecimento do sistema e, claro, de seus cidadãos.

São Estados-nação muito limitados. Ou seja, somos do Ocidente, mas temos uma modernidade que eu chamo “modernidade inacabada”. Não houve um sistema de distribuição de direitos para toda a sociedade. Então vieram uma modernidade e uma democracia muito limitadas, deixando negros, indígenas, mulheres, jovens do lado de fora.
Matias, Argentina

A rede resgata possibilidades de imaginar um futuro diferente e, portanto, uma atuação política em que o cidadão descobre sua própria voz e faz eco com outras vozes, organizando-se ao redor de novos temas, numa lógica colaborativa.

Atualizamos a democracia através do uso de redes e TICs como ferramentas de participação cidadã.
Juan, Mexico

Não consigo pensar num cidadão ativo ou num político ativo sem a tecnologia. Inclusive como um meio para poder tornar as informações mais ágeis e construir narrativas que antes eram muito monopolizadas.
Cecília, Brasil

A ousadia da juventude pega os governos de surpresa e cria uma onda poderosa que reverbera nas ruas e nas redes, atuando de forma mais destemida, direta e transparente.

Em 2011, o movimento estudantil universitário organizado vai às ruas contra o sistema de educação, principalmente superior. Esse momento inspira outros movimentos como o Revolución Democratica, Autonomistas e Esquerda Autónoma e faz surgir as 3 principais lideranças eleitas como candidatos independentes a deputados federais. Os movimentos de onde vieram se formalizam como partidos e, em 2017, constroem a Frente Amplia de Esquerda, que elege 21 parlamentares, sendo 20 deputados e um senador, além de promover uma candidata à Presidência (Beatriz Sanches) que fica em 3º lugar.

Em rechaço à visita do então presidente Peña Nieto a uma universidade e ao contra-ataque de Peña dizendo que aquela manifestação se tratava de uma articulação organizada pelos partidos da esquerda, surge em 2012 o movimento estudantil Yo Soy 132, que mobiliza a rede e leva milhares de pessoas às ruas. Esse processo ajudou a sancionar a reforma política, que permite maior participação política, como a possibilidade de serem lançadas candidaturas independentes. O Wikipolítica resolve se configurar como movimento que apoia as candidaturas independentes e elege Pedro Kumamoto em 2014 para deputado. Em 2018, ele é candidato ao senado.

Em junho de 2013, as manifestações contra o aumento da passagem de ônibus contaminam grande parte das ruas das grandes cidades num levante que mobiliza todos os lados da sociedade, não só a esquerda. A direita insatisfeita desperta, revogando seu direito de expressão. Em 2016,o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e os constantes casos de corrupção fazem emergir a necessidade da renovação política como agenda nacional. Movimentos como a Bancada Ativista, em São Paulo, e Muitxs, em Belo Horizonte, iniciam suas narrativas seguidos por outros movimentos de renovação como o Agora, Acredito, Renova etc.

Para reverter o quadro de mais de 70% dos uruguaios favoráveis à redução da maioridade penal, jovens estudantes se mobilizaram para debater nas universidades, em casa e na internet. e criaram a maior manifestação no país. Em 2014, conseguem impedir a medida, o que se torna uma grande conquista do movimento e fortalecimento da sociedade civil – para depois aprovar e mobilizar a aprovação de outros Direitos Civis, como a liberação da maconha e o casamento homoafetivo.

Em junho de 2015, uma notícia sobre o feminicídio de uma garota de 15 anos em Santa Fé mobiliza as pessoas rapidamente no twitter e escala para as ruas de forma atípica e orgânica, reunindo mais de 300 mil pessoas de diferentes classes sociais, idades e lugares nas ruas empunhando a bandeira contra o feminicídio. O movimento Ni Una Menos resgata a lei 26.485 – uma lei que protege a vida das mulheres, apesar de ainda não ter impacto – além de se espalhar por todo o território, em todos os países da América Latina.

Quando o presidente resolve explorar petróleo no solo do parque Yasuni (que possui a maior biodiversidade do país, além de ser uma reserva indígena), um movimento jovem de vários coletivos ambientalistas faz a coleta de mais de 600 mil assinaturas para pedir um referendo que impeça a exploração do parque. Apesar do governo não acatar o referendo e tentar exercer controle sobre os coletivos, o impacto dessa mobilização ambiental e cívica é enorme e conta com a participação da sociedade em peso.

Após a denúncia de corrupção que envolveu o presidente e sua vice, a sociedade civil pede pela renúncia de ambos. A importância desse fato se dá por acontecer em um país com histórico de violência, perseguição política e conflito armado, ou seja, numa sociedade que sempre viveu à sombra do autoritarismo. Um evento de facebook chamado RenunciaYA reúne 25 mil pessoas e consegue a renúncia da Presidência, fazendo despertar uma geração que também busca entrar na política. É simbólico porque o despertar desse poder político acontece nos jovens, num país onde as pessoas sempre tiveram medo de se destacar e ocupar o poder público, e contamina todas as gerações da sociedade.

Em 2015, o governo faz uma chamada sobre o acordo de paz com as FARC, enquanto a oposição faz a disseminação de fake news e propaganda política, que acaba polarizando a sociedade em uma questão que não pode ser simplificada. O acordo de paz não passa e os jovens, através da tristeza e decepção, promovem reuniões e debates, que acabam se concentrando na Praça Bolívar, sede do governo central, e ocupam a praça, fazendo pressão para que o acordo siga. A partir disso, o acordo é mantido. A insurgência se dá a partir de jovens que tinham medo de se envolver na política e, nesse cenário, começam a conversar, se envolver e ocupar a política para assegurar Direitos Civis e Humanos.

Através do referendo 21F, Evo Morales consulta a sociedade sobre sua reeleição pela 4ª vez. Os jovens se manifestam contra e não permitem a aprovação da medida, pois entendem que, apesar dos avanços do governo, não dar chance a uma nova eleição pressupõe um sistema ditatorial e é preciso haver alternância de poder. Mais uma vez, a juventude toma a frente para ressignificar o sistema democrático, inclusive para ocupar o poder político. Os movimentos FUR (partido que quer ter candidaturas em 2019) e OTRA ESQUERDA POSSIBLE fazem surgir novas esquerdas, na busca de uma democracia mais justa.

O presidente eleito declara em sua campanha que não haverá reeleição. Porém, no fim de seu mandato, consegue fazer um arranjo político e jurídico para se reeleger, o que provoca, em março de 2017, um levante popular nas ruas. Mesmo assim, no dia seguinte a medida é aprovada. Milhares de pessoas, representantes de todas as classes sociais, idades e gêneros vão às ruas num levante violento contra essa manobra, ocasionando a desistência da reeleição por parte do presidente.

O surgimento e a materialização de um novo perfil comportamental que demonstra esse novo pensar e fazer política nos territórios: suas ações, estratégias, princípios, mentalidade e valores.

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