Iniciativas
Foram mapeadas mais de 400 iniciativas ligadas à política institucional, ONGs, coletivos informais e indivíduos. Foram selecionadas 100 iniciativas em 5 regiões do Brasil para entrevistas em profundidade que, dentro das pautas de Mídia Independente e Alternativa, Participação Política, Redes de Colaboração, Movimentos Sociais e Culturais, Meio Ambiente e Empreendedorismo Social, atuam em seus territórios.
#Direito à existência
#Direito à Memória, Educação e Cultura
#Direito à Economia e Bem Viver
#Direito à participação política
#Direito à ocupação de poder
Belo Horizonte:
Manter a mulher viva. Esse é o desafio das responsáveis pela Casa Tina Martins, um centro de referência independente que presta apoio jurídico, psicológico e abriga mulheres em situação de vulnerabilidade ou vítimas de violência doméstica. A Casa surgiu em 2016, quando mulheres ocuparam um prédio público abandonado em Belo Horizonte com objetivo de chamar atenção aos casos de feminicídio no Brasil. A ocupação, que era para ser simbólica, durou 87 dias. “Quando o governo federal pediu de volta a casa, a gente falou: bom, vocês vão dar outra coisa pra gente”, lembra Clarice Filgueiras, uma das responsáveis. Segundo ela, não havia como o poder público voltar atrás uma vez que já elas tinham construído vínculos com outras mulheres. Hoje, a Casa Tina Martins é referência até para órgãos governamentais, apesar de ter pouco suporte do Estado – ao menos, por enquanto. A proposta é seguir pressionando e mostrando possibilidades que nascem das demandas reais da população.
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Muito do que sabe, Flavio Paiva – mais conhecido como Russo – aprendeu na rua. Nascido em família evangélica, se envolveu com o movimento punk e, com envolvimento de um familiar no tráfico de drogas, relacionou o que acontecia com as letras de rap de Racionais a GOG. Foi a deixa para se engajar no movimento Hip Hop, onde se encontrou. Rapper e educador atuante no movimento desde 1999, Russo já participou de diferentes coletivos, frentes, conselhos, fóruns e chegou se candidatar a vereador na última eleição municipal. E há três anos em Ibirité, na região metropolitana de BH, se juntou a outros jovens no coletivo Terra Firme, uma espécie de incubadora periférica com cursos, oficinas e produção de eventos que visa dar visibilidade a outros grupos culturais organizados pela juventude em espaços públicos. “Muitos querem que o jovem fique na frente do celular, ali dentro de casa, querem tirar o jovem da rua, mas é a rua que socializa, que faz a gente ser humano. Se você tirar a galera da rua, você mata a humanidade”, diz Russo, para quem a rua é fundamental.
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A política picou Danusa Carvalho nos anos 1970, auge da ditadura militar. Ela virou uma ativista ainda adolescente, se envolveu no universo da cultura, trabalhou com diferentes artistas Brasil afora e deu sua contribuição para a construção de algumas políticas públicas que temos hoje. Agora, ela é uma das atuantes da Associação Arebeldia Cultural, iniciativa fundada pelo rapper Flavio Renegado no Alto Vera Cruz (aglomerado em Belo Horizonte) que incentiva o protagonismo, fomenta a educação, a formação profissional e participação comunitária de pessoas em vulnerabilidade.
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Na zona oeste de Belo Horizonte, um grupo de moradores resiste à especulação imobiliária para preservar a única área verde da vizinhança. Desde 2012, existe um projeto para construção de duas torres com quase 300 apartamentos, 23 lojas e mais de 700 vagas para carros que ficariam situadas na área verde da chácara Jardim América. Esse arranjo foi feito através de acordo entre a Prefeitura, uma construtora e os proprietários do terreno, à revelia da proteção do espaço verde conforme diretriz do Plano Diretor. A partir de então, o movimento Parque Jardim América resiste à implementação do empreendimento e busca a preservação da área verde, com diversas ações de resistência, mobilização da população e divulgação do conflito, com objetivo de se criar um parque num quarteirão com mata nativa. O grupo continua na ativa, participando de conselhos e audiências públicas e se apropriando das ferramentas de tomada de decisão – tudo para preservar essa área verde.
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1991, início da redemocratização do País. Movimentos debatem as demandas da população negra brasileira, historicamente negligenciada. E nas discussões em Belo Horizonte, um grupo ligado a religiões de matrizes africanas chama a atenção para importância de se considerar a subjetividade e religiosidade africanas nesses processos políticos. “A máquina é muito cega”, observa Makota Celinha Gonçalves, coordenadora nacional do Cenarab – Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira. “A máquina vira e fala assim: ‘não posso te dar uma porta porque o Estado é laico’, mas dá pro outro [de religião hegemônica] porque historicamente o outro faz parte do Estado”. Com origem na capital mineira, o Cenarab já está organizado em 18 estados e surge com objetivo de formar lideranças para combater a intolerância religiosa, o preconceito e a discriminação por meio do fortalecimento das comunidades tradicionais e propõe políticas públicas para sua preservação. “Nossos ancestrais tiveram estratégia na religiosidade nossa pra garantir o sagrado do Orixá. Eles tiveram estratégia pra entender que, quando chegaram aqui, já tinha dono. Precisamos dessa estratégia”, completa Pai Ricardo de Mouro, um dos diretores da organização.
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O direito à terra e ao teto, garantido por meio de ações diretas, como motor da reforma urbana. Isso é o que move o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), presente nos aglomerados de Belo Horizonte e em várias partes do Brasil, que defende a reforma urbana e o direito humano de morar dignamente. Formado por milhares de famílias sem-teto de todo o País, o MLB acredita que a luta por moradia é capaz de mobilizar milhares de pessoas, pressionar os governos e chamar a atenção para os problemas enfrentados pelo povo pobre nas grandes cidades. Por isso, o movimento defende a ocupação de imóveis ociosos como meio para desenvolver o espírito de trabalho coletivo. “Se a gente não mostrar na prática que a gente é diferente, a gente não inova. O critério da verdade é a prática”, diz Léo Péricles, integrante do MLB.
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Depois de décadas escondido, o Carnaval de Rua de Belo Horizonte ressurge com força nos anos 2000, puxando um debate sobre o direito à cidade e a ocupação do espaço público. E junto dele, diversos movimentos identitários, como de negros, mulheres e a população LGBTQ. Em outros espaços, como as universidades, esses debates também se ampliam. Uma série de iniciativas surge. E entre a população LGBTQ, ela está reunida em uma frente com objetivo de potencializar o discurso e ampliar sua efetividade, seja com presença em conselhos municipais e estaduais, seja fazendo parte de mandatos no legislativo. “Quando você reconhece a sua história e a história dos que estão ao seu lado, você é capaz de propor”, dizem integrantes da Frente Autônoma LGBTQ na cidade.
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O Brasil tem mais de 720 mil pessoas encarceradas; 40% delas aguardam julgamento; mais de dois terços são negras. Por outro lado, o Poder Judiciário se configura em uma casta branca e majoritariamente masculina, com os maiores salários e benefícios do funcionalismo público. Mulheres e homens brancos julgando mulheres e homens negros. O que Nana Vieira, Ana Paula e outros advogados perceberam é que a linguagem jurídica, a falta de acesso a advogados particulares, o excesso de demanda da Defensoria Pública e o fato de organizações de direitos humanos atuarem principalmente em casos emblemáticos perpetuam um processo de criminalização da população negra e pobre por gerar um vácuo na defesa. Por isso, criaram em Belo Horizonte a Assessoria Popular Maria Felipa, que presta serviços de assistência jurídica a preços baixos. “Não ter um advogado em condição de acompanhar impede as pessoas de denunciar, porque se eu falo para a pessoa denunciar mas não consigo produzir respaldo para que ela não sofra represália, eu não posso falar para denunciar”, explicam elas.
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Onde estão os negros e as negras? E quais espaços que ocupam? O fato é que, quanto mais subalterna a função, mais negros a exercem. E quanto mais elevada, mais brancos a ocupam. A partir dessa inquietação, um grupo de militantes negros de Belo Horizonte deu início em 2015 à criação do Partido Preto em Movimento para disputar espaços institucionais. A proposta foi deixada de lado ao notarem que um caminho mais viável é fortalecer candidaturas negras. Assim, o partido se transforma nas Pretas em Movimento, um coletivo que atua na identificação e fortalecimento de sujeitos políticos negros dispostos a ocupar espaços de poder – de conselhos a legislaturas. “A gente está sempre na base, sempre constrói, sempre mobiliza, sempre articula, nós estamos sempre nessa movimentação, mas nós nunca chegávamos a ocupar esses espaços”, dizem os integrantes. Hoje, o coletivo tem representantes no Conselho Municipal de Cultura e no Conselho Estadual de Cultura, em universidades e gabinetes de vereadoras da capital mineira. É apenas o começo para reverter o cenário de opressão no País.
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A relação de Laura Barroso Gomes com a natureza vem da infância, quando acompanhava o avô na roça. Esse contato direto com o próprio alimento influenciou em sua escolha pelo curso superior de Ciências Biológicas, mas foi na Agroecologia que ela se encontrou de fato. Em anos trabalhando com agricultores familiares do interior, em projetos de reforma agrária, ela foi indicada para atuar na REDE de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (REDE). A organização tem 32 anos (mesma idade de Laura), e surge na redemocratização do País com a articulação de agricultores alternativos em contraponto ao agronegócio. Desses encontros, surgem outras organizações pelo interior de Minas Gerais, e a REDE inicia um trabalho de agricultura urbana na Região Metropolitana de Belo Horizonte – uma iniciativa pioneira que influenciou outras redes e projetos Brasil afora, incidiu na discussão sobre políticas públicas de segurança alimentar e direito à cidade. Hoje, além de estruturar pequenas famílias de produtores e gerar renda, a REDE tem parceiros ocupando cargos públicos, presença em conselhos locais, comitês e universidades. “Devagarinho, a gente chega lá”, diz Laura. O tema da alimentação saudável tá na prefeitura, na novela… Agroecologia é pop, é tech, é tudo!
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As organizações da sociedade civil que você conhece atuam pela emancipação do povo ou pela manutenção das coisas como elas estão? Em 1997, um grupo de jovens jornalistas formados na PUC-Minas resolveu reunir a experiência dos participantes com fotografia e vídeo para discutir o papel dos meios de comunicação na formação política de jovens e educadores. Surgiu assim a Oficina de Imagens, uma organização que atua para garantir os direitos de crianças, adolescentes e jovens de Belo Horizonte com uso de ferramentas de comunicação e educação. “É um pressuposto do exercício da cidadania ter uma visão crítica de mídia e apropriação crítica da tecnologia”, observa Bernardo Brant, um dos integrantes da Oficina de Imagens, para quem essa emancipação vai acontecer com uma revolução molecular, a partir de pequenos grupos.
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Inovar não necessariamente é reinventar a roda, mas fazer o que precisa ser feito com o que se tem. E isso tá no cerne da FA.VELA, aceleradora mineira que nasceu no Morro do Papagaio (Centro-Sul de Belo Horizonte) e hoje estimula e capacita empreendedores em outras favelas de BH a partir das demandas e potências de cada território. Porém, se a população sabe que garantir o básico já é um grande avanço, isso nem sempre é realidade na política institucional. “O sistema não é feito pra pró-atividade e pra resolução dos problemas. Se um vereador leva uma demanda hoje, vai ter que passar por tantas esferas e afins pra poder virar uma solução que eu tenho medo do sistema me engolir e me engessar”, aponta João Souza, um dos fundadores da Fa.Vela, com a Tatiana Silva. Por outro lado, movimentos como Muitxs, que em 2016 conseguiu eleger duas novas vereadoras na capital mineira sem grana e com muita mobilização, ajudam a oxigenar esses espaços e a mostrar mais uma vez que as dificuldades do cotidiano já indicam os caminhos a serem seguidos. “Inovação política são candidaturas autônomas para as favelas e periferias”, aponta João.
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Você conhece suas raízes? Em um País em que povos indígenas foram exterminados e africanos escravizados, o direito à memória é um privilégio. Alvaro Zulu entendeu a dimensão disso sendo quem é: descendente de quilombolas e indígenas da região de Governador Valadares, ele é um dos milhares de habitantes negros das vilas, aglomerados e favelas de Belo Horizonte. Filhas e filhos cujos antepassados deixaram suas terras no interior de Minas Gerais rumo a uma vida melhor na capital, ocuparam espaços às margens da cidade – como o Morro das Pedras, onde Zulu mora – e assimilaram outras culturas. Nas mobilizações e andanças para resgatar a memória dos seus, ele e outras pessoas criaram o Bloco Arrasta Bloco de Favela, um bloco carnavalesco que faz política no dia a dia a partir do resgate ancestral e valorização de afrodescendentes e do reconhecimento especialmente de mulheres negras como eixo principal para resolver e superar problemas históricos. “A maturidade me mostra que as coisas grandes, as grandes transformações, demandam tempo. Não depende só da minha vontade. Há a necessidade da conscientização”, diz Zulu.
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Biblioteca para a comunidade, oficinas de rap para a molecada e baile funk para fechar as noites com chave de ouro. Quem promove tudo isso há 4 anos é o centro cultural Lá da Favelinha, uma referência cultural na cidade de Belo Horizonte, localizado no aglomerado da Serra, a maior favela da cidade.
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Brasilia:
Imagine que você é um jovem e que você more na quinta pior cidade para a juventude no Brasil. O que você faria a respeito? Gabriel Fidelis, hoje com 25 anos, não ficou parado. Nascido em Brasília, ele se mudou ainda criança com os pais para Luziânia, um município de Goiás que faz parte do Entorno – uma região urbana que abrange cidades goianas e do Distrito Federal que sofrem influência da capital. Em 2014, quando Luziânia foi apontada como município de alta vulnerabilidade juvenil, Gabriel se juntou a outros jovens para exigir a um Conselho Municipal de Juventude para participar das decisões sobre a cidade, que foi criado apenas no ano passado. Enquanto isso, ocuparam uma área pública para criar um centro cultural e Gabriel foi candidato a vereador na última eleição município. Ele não foi eleito, mas também não desistiu de ocupar esses espaços. “Não precisa ser muito inteligente pra pensar qual é o problema que está matando essa juventude, que está fazendo essa juventude sumir, não é muito difícil. Então, a mudança tem que partir do estado”, diz.
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2016. O Brasil fica chocado com a notícia de um estupro coletivo de uma adolescente praticado por mais de 30 homens. Em Cidade Ocidental, um município do estado de Goiás que faz parte do Entorno do Distrito Federal, se reuniu para fazer alguma coisa além da revolta. Assim surge o Coletivo Nós por Nós, que nasce da ideia de mulheres ajudarem outras mulheres, com apoio inclusive emocional e o objetivo de contribuir de maneira positiva para mudanças efetivas na vida de todas. Para além do apoio mútuo, elas se mobilizam em torno de ações efetivas em Cidade Ocidental, com eixos de trabalho, serviços e participação em audiências públicas e conselhos.
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Mateus Santana, de 26 anos, se reconhece como uma sujeito político desde que entendeu que era um morador negro de periferia – e o que isso significa: o ato de existir e resistir cotidianamente. Nascido e criado em Samambaia Norte, cidade-satélite de Brasília, ele é um dos responsáveis pelo O’Beco Cultural, onde diariamente ocorrem atividades diversas, entre capoeira, skate, basquete, inglês e um slam mensal, sem qualquer apoio governamental. Mateus espera que o espaço seja reconhecido como local de convivência e consolidação de identidades em Taguatinga, fortalecendo quem vive nas quebradas brasilienses. “O corpo preto em pé é um ato político, porque a gente nunca sabe quando vai ser o próximo [a cair]”, aponta. E, a partir de sua quebrada, ele acredita que a mudança no sistema político acontecerá quando as periferias e a população negra se organizarem para não ser mais base, e sim protagonistas do processo. “Tem muita gente que só precisa de uma oportunidade, só precisa de uma porta, de uma janela, de uma fechadura para entrar”.
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Das olarias de São Sebastião saiu boa parte dos tijolos usados na construção de Brasília. E é em referência ao histórico dessa cidade-satélite da capital nacional que as Brigadas Populares batizaram sua casa, a Olaria Cultural, um espaço coletivo e colaborativo criado para promover direitos humanos, possibilitar a troca de ideias e prestar serviços à comunidade, além de atividades culturais. O poeta Tiago Xavier começou a escrever ainda no Ensino Médio e hoje é coordenador de produção do espaço, criado no início de 2017. Para ele, o desafio é disputar com a TV o tempo do morador e da moradora. Por isso, a Olaria Cultural realiza saraus nas praças e escolas, oficinas e rodas de samba ao ar livre. Mais do que convivência, o espaço permite que se faça política – afinal, dos 3 milhões de moradores do Distrito Federal, menos de 10% vivem no Plano Piloto. “O cento de poder somos nós, já somos nós. Agora, é só a gente deixar de ser o condutor dos poderosos e sermos os próprios poderosos”, observa Tiago.
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Lucas Pinheiro é cria do hip hop do Distrito Federal, terra de expoentes como GOG. E hoje acredita na mobilização de recursos como ferramenta política de transformação da sua quebrada. Morador de Ceilândia, ele organiza eventos desde 2009, quando ainda estava no Ensino Médio. Depois, organizou grandes festas com amigos, trabalhou no terceiro setor em Florianópolis, foi promoter de casa noturna na Argentina e, quando voltou, criou a M.U.B Produtora – Movimento Undergound de Brasília com outros seis amigos, com o objetivo de movimentar a cena cultural das periferias da capital federal. Com o tempo, a produtora começou a fazer oficinas para formar novos agentes e fomentar artistas locais também. “Crescemos no meio de amigos que tavam rimando, frequentamos as batalhas desde o início e vimos ali uma necessidade de produção e atuação que não fosse somente por dinheiro”, conta Lucas.
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No meio do Cerrado, a resistência chega sobre duas rodas. Cidade planejada, com largas e planas avenidas, Brasília é conhecida pela proteção ao pedestre e pelo ciclismo de ponta. Ao mesmo tempo, é perigosa para quem usa a bicicleta nos afazeres do dia a dia – no início dos anos 2000, toda semana morria em média um ciclista vítima de atropelamento. Em 2003, após o marido sofrer um acidente, a jornalista Beth Veloso reuniu atletas, professores universitários, engenheiros, estatísticos e grupos de pedal para pensar uma cidade mais harmônica e menos violenta para ciclistas. É dessa forma que nasce a Rodas da Paz, organização que trabalha para mudar a realidade da mobilidade urbana por meio da sensibilização e mobilização cidadã, do controle social e da influência sobre políticas publicas. Desde então, a Rodas da Paz articula uma série de políticas públicas para esse modal, como a criação de ciclovias em todo o Distrito Federal, e enfrentou os defensores de mais espaço para carros. “Um modelo de cidade que a gente defende é uma cidade menos dependente de petróleo”, conta a socióloga Renata Florentino, que ingressou no grupo em 2013 sem saber pedalar, durante a pesquisa de seu doutorado sobre o legado da Copa do Mundo no Brasil. “Queremos uma cidade com um transporte com baixa emissão de carbono e ao mesmo tempo mais seguro para as pessoas”.
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No entorno de Brasília, o coletivo Di Favela vivia uma contradição: trabalhavam com os elementos do hip hop nas escolas, mas uma lei local criminalizava quem praticava o graffiti (um desses elementos). Por isso, Davi Marcos e outros militantes começaram a levar essas questões para os deputados distritais da Câmara Legislativa. Mais que isso, a tirar parlamentares e assessores dos gabinetes para conhecer a realidade das periferias e ouvir a população. “A gente tem que ter ocupação do espaço, tem que discutir”, aponta Davi. “Eu sei que o momento é de sangria, mas também é um momento em que muitas forças emergentes que estão chegando.”
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A 30 quilômetros do Plano Piloto, a região “nobre” de Brasília, quase meio milhão de pessoas vivem na sombra dos estereótipos: Ceilândia, que como muitas outras periferias País afora é considerada um território de violência. Mas no Ceilândia em Foco, um jornal comunitário com tiragem de 10 mil cópias por mês, as manchetes são outras. “A gente tem uma coluna chamada de ‘Diva’, por exemplo, em que todo mês a gente traz uma mulher que faz algo pela comunidade”, explica Pamela Paiva, uma das sócias do jornal.
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Ivanete Silva dos Santos é brasiliense, mas ainda jovem se mudou com a família para Rondônia no final dos anos 1980. Na região Norte, ela conheceu a luta de Chico Mendes, militante que inspirou sua atuação política. Após a morte do acreano e a volta de Ivanete para o Distrito Federal, ela começou a atuar em sindicatos e fez faculdade. Mas faltava algo: era preciso se voltar para a questão ambiental, como fez Chico Mendes. Sem espaço no sindicalismo, Ivanete procurou grandes ONGs, mas não teve espaço. Então, fundou a sua própria organização. Hoje, a Casa da Natureza promove atividades lúdicas com crianças de 09 a 14 anos e suas famílias em Ceilândia com objetivo de promover a consciência ambiental. Mas Ivanete continua sonhando: quer estender esse projeto para todo o quadradinho, o entorno de Brasília.
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O ribeirinho baiano Juraci Moura se relaciona com a arte desde criança, por meio da capoeira. Há 33 anos vivendo no Distrito Federal, foi já adulto que se voltou novamente para a arte e começou a estudar música. E nas pesquisas sobre pandeiros, chegou à confecção de instrumentos musicais com reutilização de papel e outros materiais descartáveis. Assim, nasce o Som de Papel, uma banda musical que utiliza instrumentos de percussão feitos de papel: zabumba, alfaia, caixa, tambor… Mais do que isso, é um coletivo que usa a arte para discutir questões ambientais e organização política na região de Taguatinga. “O mercado está produzindo bastante matéria-prima que vira lixo e que não tem reutilização . E gente tá refazendo, reconstruindo esse caminho, né?”, reflete ele, que atua com oficinas de instrumentos em escolas para debater esses pontos. “É um público do futuro, são as novas pessoas que vão se interessar por fazer as coisas de forma diferente”.
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E se o lugar onde você vive se chamasse Terra da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI)? Esse é o significado de Ceilândia, região administrativa número 9 (RA-IX) do Distrito Federal para onde, há 47 anos, foram levadas milhares de famílias que ajudaram a construir a capital federal e moravam em barracos de favelas. A 30 quilômetros do Plano Piloto de Brasília, os quase meio milhão de habitantes dessa cidade-satélite vivem na quase invisibilidade. É nesse cenário que surge o RAIX, coletivo focado no empreendedorismo criativo periférico que produz itens de vestuário e presta apoio a artistas locais. O território é a base de tudo. Por isso, o nome faz referência não somente à abreviação que identifica a região administrativa como também indica a representatividade de Ceilândia para seus idealizadores.
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Dar visibilidade às manifestações culturais do Planalto Central, ter um conteúdo de qualidade e referência e, ao mesmo tempo, ser uma ferramenta de reinserção social: essa é a proposta da Revista Traços, que destaca a cena cultural de Brasília em edições que já viraram itens de colecionador. Sente só: mais do que um veículo de comunicação, a publicação gera renda a pessoas em situação de rua ou alta vulnerabilidade social, que vendem cada exemplar por R$ 5 dos quais ficam com R$ 4.
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Perto do poder, longe das tomadas de decisões. Mas não por muito tempo, se depender do Max Maciel. Ele tem 35 anos e vive em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, a capital federal. Empreendedor social, pedagogo de formação com especialização em gestão de políticas públicas em gênero e raça, coordena a Rede Urbana de Ações Socioculturais (RUAS). É nesse lugar, num cenário de desigualdade que a capital federal propicia, em que ele milita há 17 anos por mudanças.
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Em São Sebastião, cidade-satélite de Brasília, uma horta comunitária nasce em 2004 após a morte de uma moradora por hantavirose, cujo vírus é transmitido por ratos por meio da urina, fezes ou saliva. E onde há lixo, há ratos. Essa foi a gota d’água para a comunidade do Morro Azul se reunir e agir para mudar esse cenário. Sai o lixo e o entulho, entram as plantações. Com apenas cinco participantes no início, hoje a Horta Girassol envolve 30 famílias. Todos se integram: homens, mulheres e até as crianças, que ajudam a regar. Além de elevar a autoestima dos vizinhos e funcionar como terapia para participantes, a horta rende resultados até no bolso, já que comprar verduras no supermercado já não é tão necessário – o cultivo rende alface, cebolinha, coentro, mandioca e algumas frutas. Além disso, o local limpo trouxe mais tranquilidade na vizinhança. Os assaltos se tornaram raros, assim como as brigas de rua que eram frequentes. O asfalto e a coleta do esgoto ainda não chegaram nessa periferia da capital federal, mas em um pequeno pedaço de terra os vizinhos entenderam o que é viver em comunidade. Para Hosana Alves, que integra o grupo e vai se candidatar a um cargo legislativo nas eleições deste ano, iniciativas como essa é o que os governantes precisam atender e potencializar. “É preciso ouvir o povo, trabalhar em conjunto com o povo, ver as demandas”, diz ela. “O povo grita, pede, tá aí, só não vê quem não quer, só não escuta quem não quer”.
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Rayane da Silva Soares está há cinco anos no Jovem de Expressão. Ela entrou como educanda da oficina de audiovisual por meio de uma amiga, se tornou funcionária e hoje está na coordenação. O projeto que acontece em Ceilândia foi criado em 2007, a partir de uma pesquisa que demonstrou como a violência afeta a juventude, e sua tecnologia social uniu a promoção da saúde ao potencial criativo de pessoas entre 18 e 29 anos e sua capacidade única de gerar respostas, promovendo a colaboração e autonomia da juventude por meio de oficinas e ações culturais. Para Rayane, que é formada em pedagogia e cujo contato com a política se deu ainda na escola, quando participou do movimento estudantil, é de lugares como esse que virão as lideranças políticas que representam de fato os interesses da população. “A mudança vai vir do Estado, mas não das pessoas que estão lá agora. São dessas pessoas que estão entrando nas universidades, são desses jovens que estão fazendo trabalho de base nas comunidades e ocupando esses espaços, porque os que estão lá agora não querem não, não querem mudar”, diz ela.
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Na falta de garantia de direitos e de ambientes para ser quem se é e expressar o que sente, as periferias criam seus próprios espaços. E em Ceilândia, localizada nas bordas de Brasília, um grupo de mulheres criou a Casa Ipê, um centro cultural que abriga e acolhe mulheres cis ou trânsgeneros, lésbicas, bissexuais em suas diferentes manisfestações artísticas. A partir das experiências e vivências estéticas, são realizadas rodas, prosas, escutas, saraus e incentivo à produção artística-cultural. “Inovação política é que todas as pessoas tenham voz”, aponta Daniela Vieira, uma das integrantes do grupo.
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Recife:
2015. Milhares de mulheres negras marcham em Brasília por conta do 20 de novembro. E algumas delas que partiram do Recife se reencontram, discutiram e perceberam a importância de manter o movimento firme. Assim começa a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco (RMNPE), uma articulação sem fins lucrativos que atua contra o racismo, o machismo e pelo bem viver sem a violência. O desafio não é pouco. As mulheres negras são a base da pirâmide social brasileiras, as que sofrem com o feminicídio e os homicídios de jovens negros, com o encarceramento, com as piores taxas de alfabetização, emprego formal e renda. Por isso, a RMNPE não parte do zero, mas do reconhecimento de conquistas de quem veio antes, do Movimento Negro Unificado (MNU), e aglutina jovens que chegaram às universidades e as trabalhadoras e empreendedoras das periferias – e essas, especificamente, muitas vezes subestimadas pela esquerda branca. “Nós somos uma população vitoriosa, porque nós conseguimos não ser eliminadas quando o estado planejou e executou suas estratégias, então valorizamos a forma como as pessoas resistem, sobrevivem no cotidiano”, dizem elas.
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A poeta Patrícia Naia é paulistana, mas mora no Recife, onde cursa Letras na Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Ex-estudante de escola particular, foi nesse ambiente em que ela percebeu aos 13 anos que fazia parte de uma minoria – e que isso algo não estava certo. “Aí, eu comecei a escrever”, recorda-se. E essas escritas ganharam cadernos, foram parar no computador e de lá para um blog. “Entrou uma parada na minha cabeça de fazer uma literatura voltada para as mulheres, e cada vez mais propiciar espaço onde as mulheres pudessem conhecer a literatura e pudessem também compartilhar o que elas escreviam”, lembra ela, que em agosto do ano passado se juntou a uma amiga para fazer uma versão pernambucana do Slam das Minas, que já acontecia em São Paulo. A primeira competição de poesias no Recife, protagonizada apenas por mulheres, superou as expectativas: mais de 300 compareceram ao centro da cidade. O desafio agora é estar aonde essas meninas moram, nas periferias, para fazer poesia e buscar uma transformação efetiva. Os versos são sua ferramenta política. “Falta um grito que fica entalado que a gente não tem espaço para falar”, completa.
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Recife foi construída sobre rios e manguezais, mas como muitas outras metrópoles brasileiras também virou as costas para os recursos naturais. E, como consequência, para as populações que vivem nessas áreas. Por isso, na Ilha de Deus (uma comunidade de cinco mil habitantes) continuar pescando é uma forma de resistência contra a especulação imobiliária, a poluição dos mananciais e a criminalização da pobreza. “100% dos moradores vivem da pesca – se não vivem diretamente, já pescaram um dia. Falando especificamente das mulheres, é bem mais complexo”, explica Eloísa Amaral, que atua como educadora de um dos projetos da Ação Comunitária Caranguejo Uçá. A associação foi criada em 2002 por um grupo de amigos que se juntou para dar continuidade a uma luta por sobrevivência que sempre foi protagonizada por mulheres da comunidade, como a educação e a saúde. Para isso, criaram uma rádio comunitária. Com uma caixa de som e um microfone colocados na rua, eles abriam espaço para falar de questões políticas e da importância de se organizar para conseguir melhorias em prol da coletividade. Hoje, além da rádio, o Caranguejo Uçá tem o Jornal da Maré (programa mensal exibido pela TV Universitária do Recife e gravado na Ilha de Deus), o Cine Mocambo (com exibições semanais), o grupo de maracatu Nação da Ilha, o grupo de teatro Trilha e a Ciranda de Mulheres, na qual Eloísa atua. “O grande desafio é a gente se adequar e mobilizar essas mulheres, mostrar que essa realidade que é tão difícil para elas pescadoras e para nós, mulheres em geral, pode ser minimizada quando você tem o apoio da outra e está consciente dos seus direitos”, aponta Eloísa.
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Luiza Batista Pereira passou uma noite sem dormir. E, acordada, despertou para a política. Isso porque ela não conseguia parar de pensar no que ouviu da presidenta do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas da Cidade do Recife. “Quer dizer então que a minha aposentadoria, da qual eu não participei dessa luta, não foi de mão beijada?”, questionava-se. Filha de agricultores muito pobres, Luiza começou a trabalhar como empregada doméstica aos 09 anos de idade. Não teve infância. Aos 36, teve um câncer de mama e ficou afastada do trabalho. Foi quando conheceu o Sindicato. Depois, ao romper um relacionamento que durou 21 anos e quase cair em depressão, ela resolveu voltar a estudar por meio de um curso das próprias sindicalistas. “Foi um divisor de águas na minha vida, que maravilha!”. Com filhos criados e aposentada por invalidez desde os 43 anos, Luiza se filiou ao Sindicato assim mesmo. E começou a viver. Seguiu com os estudos, participou de marchas em Brasília, seminários e, em 2009, foi convidada a concorrer à presidência da organização – e hoje está em seu terceiro mandato. Nesse período, acumulou muitas conquistas coletivas, como a estabilidade da trabalhadora doméstica gestante, as férias de 30 dias, o direito de folga aos feriados, a emenda constitucional que reconhece a categoria… Hoje, aos 62 anos, Luiza sabe que ainda há muito a ser feito diante do retrocesso da garantia de direitos e do racismo, machismo e LGBTfobia, que são estruturais da sociedade – e que isso passa por ocupar os espaços de poder. “A gente não luta só por nós, a gente luta também ao lado dessa minoria que é perseguida, minoria em direitos”.
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Qual é o papel das igrejas em debates sobre o racismo e o machismo, por exemplo? “Esse espaço religioso precisa ser mexido, precisa sofrer algum tipo de abalo sísmico, nem que seja pequenininho”, responde Vanessa Barbosa, criada no candomblé até os 11 anos e convertida ao cristianismo depois disso. Depois do contato com discussões políticas na faculdade, onde também reafirmou sua negritude, Vanessa estava disposta a voltar para a igreja e pautar questões que não estavam sendo colocadas. Afinal, pra ela Jesus é preto e Deus é uma mulher negra. Ela procurou nas redes sociais, encontrou coletivos e organizações, conversou com muita gente até descobrir o Movimento Negro Evangélico – Recife. Essa articulação nacional iniciada em 2000 chegou ao Recife no ano passado, e nesse espaço Vanessa conheceu Jackson Augusto, que ministra na Igreja Batista. Jackson nasceu na Comunidade dos Coelhos e ficou órfão de pai aos 07 meses. A mãe se mudou para outro bairro, se casou com outro homem e sofreu violência doméstica por 08 anos, mas a igreja ignorava isso. “É muito complicado você sair da bolha que lhe impõem, mas a realidade é muito mais forte do que as teorias ou do que as mentiras que são contadas”, lembra ele, que começou a questionar por que a igreja não aceitava falar de feminismo nem tratava do racismo. Sem essas discussões e com a omissão ou mesmo participação das igrejas cristãs na colonização e escravidão de negros, Jackson se juntou ao Movimento Negro Evangélico para discutir a teologia do ponto de vista do negro. “É uma disputa de narrativa”, diz. O objetivo é fazer o diálogo entre movimentos sociais, igrejas e com as periferias, e o trabalho de base consiste em visitar e atuar com pequenas igrejas evangélicas de comunidades. E aquelas ditas as “mais conservadoras”, até o momento, têm acolhido os debates com maior efetividade. Afinal, a realidade é preta, pobre, periférica e evangélica.
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Adelaide Santos, de 20 anos, está na rua pra mudar. E foi trazida para a rua pelos ecos da poesia. Depois de quatro anos participando de aulas de artes cênicas e dança afro, ela se apaixonou pelos versos por meio de amigos poetas. Junto ao rap, que também já conhecia, ela começa a relacionar a poesia marginal a sua própria realidade: os problemas dentro de casa, na favela, os amigos que foram presos, outros que foram assassinados. Adelaide tinha necessidade de falar. E por isso, começou a frequentar o Recital Boca No Trombone, um sarau que acontece semanalmente em uma praça na Água Fria, zona Norte do Recife, e que ela já conhecia mas começou a fazer parte ativamente desde o ano passado. “Foi quando eu comecei a ligar para esse tal de genocídio da população negra e que eu tinha que fazer alguma coisa”, diz ela, que hoje usa a poesia como ferramenta de luta e expressão para intervir a realidade.
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Elisângela cresceu em Peixinhos, mas não conheceu o bairro inteiro quando era criança. Isso porque, nessa região pobre do Recife, gangues rivais disputavam o território e influenciavam o vai e vem dos moradores – a divisa era feita por ruas e não podia-se cruzar de um lado para o outro sem autorização. A violência fazia parte da rotina da população: quase 300 jovens foram assassinados nas últimas três décadas. O irmão de Elisângela quase foi um deles. Entre idas e vindas dos presídios, ele não se ressocializou até sofrer um atentado de outro grupo. Conseguiu escapar da morte, saiu do Estado e recomeçou sua vida longe da família. Engajada desde os 12 anos em projetos sociais, Elisângela sabia que precisava fazer mais alguma coisa – e começou pelos familiares que sofriam a perda de seus filhos. Assim, há dez anos surgiram as Mães da Saudade, grupo que presta apoio a 60 mães que perderam filhos em homicídios. “A gente facilita com que as mães tenham contato com as questões jurídicas e possam reivindicar a justiça para o crime que aconteceu com os filhos”, ela explica. Mais do que isso, elas fazem rodas de conversa, diálogos, ciclos de restauração que trabalham o sentimento em si para superar um trauma que não termina no velório. E Elisângela sabe que seu trabalho é uma pequena parte para que a mudança aconteça de fato. “Existe um problema sério que é a sonegação do direito que a gente vive. A falta de políticas de prevenção, eu acho que é um grande desafio, porque a gente vem falando de prevenção desde o tempo que a gente surgiu. Mas a gente vê um colapso muito grande que é a falta do comprometimento desses políticos, dos representantes legais”, aponta.
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Mãe Beth de Oxum é nascida, criada e ainda vive no bairro de Guadalupe, em Olinda. E é aqui que ela faz política. Ialorixá de um terreiro de matriz africana, ela também realiza há 20 anos a Sambada de Coco de Guadalupe. E, como resultado, hoje coordena o Ponto de Cultura Coco de Umbigada, que agrega ações de mídia livre com um estúdio e uma rádio comunitária, um laboratório de tecnologias livres e de inovação cidadã, e um restaurante. “Sou uma mulher, uma mãe com muitos filhos, paridos e não paridos, e tô nessa linha de frente aí, com a cultura, com a religiosidade e com uma perspectiva da gente transformar o nosso território num lugar mais do nosso jeito negro, afro-brasileiro, com a nossa cara, com a nossa perspectiva de cidade”, ressalta ela. E num país que mata 60 mil pessoas por ano – a maioria de jovens negros –, Mãe Beth aponta que o maior desafio é ter política pública que atenda a demanda da população. Por isso, em um cenário de violência, ela quer a cultura como protagonista para restabelecer relações e preservar simbologias. “É aqui no território que se dão os processos, que se dão os embates, né, a violação de direito, o racismo, a violência. Então é aqui que a gente tem que transformar antes de transformar o país. Tem que transformar o território onde a gente vive”.
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Cleia Santos é uma mulher arretada. Diarista, artesã, empregada doméstica, ela já fez de tudo nessa vida. Desde os anos 1980 participa de grupos que discutem os direitos das mulheres e, quando chegou à comunidade do Passarinho (em Olinda), em 1997, não foi diferente: com outras mulheres, discutia violência doméstica numa kombi. Depois, elas passaram a se reunir em outros locais, realizar oficinas, debater infraestrutura como acesso à água, luz, moradia… A militância rendeu frutos, as companheiras de Cleia eram chamadas para palestras e audiências, e até para a Espanha elas foram. Em 2015, inspiradas pelo movimento Ocupe Estelita (na região central do Recife), Cleia e elas criaram o Ocupe Passarinho – uma ação ativista que contou com a participação de vários movimentos negros, feministas e pelo direito à cidade, com objetivo de lutar pelo direito à moradia das 5 mil famílias que vivem na comunidade do Passarinho. Uma das lutas era pela iluminação pública, inexistente naquela região, que propiciava casos de violência contra a mulher, como estupros. Mais do que isso, hoje as mulheres do Ocupe Passarinho discutem o reforço no transporte, a necessidade de creches, o atendimento nos postos de saúde e a conservação do rio que corta o bairro. “Quando a gente faz uma questão falando sobre gênero, sobre saúde da mulher, sobre o corpo da mulher, sobre o direito dela ir e vir, a gente está falando de política”, salienta Cleia.
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Isabela França é psicológa, tem 23 anos e seu envolvimento com a política se deu a partir do feminismo – primeiro, de forma individual, e depois coletiva, como geralmente acontece. “As mulheres começaram a se organizar primeiro para combater o machismo dentro dos próprios movimentos”, aponta ela. E no caso dos movimentos antiproibicionistas, essa articulação se expandiu por outros estados. O resultado desse processo é a RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, com representação em 13 estados e pautada no empoderamento de mulheres usuárias de drogas e que são anticlassistas, antirracistas e antiproibicionistas. Nesse sentido, a RENFA pauta também o encarceramento em massa por conta da guerra às drogas, especialmente de mulheres negras que vivem nas periferias e geralmente são chefes de família.
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Comida de rico X Comida de pobre. Isso existe? Hamilton Henrique morava na Comunidade Menino de Deus, em São Gonçalo (município pobre da região metropolitana do Rio), quando teve a oportunidade de trabalhar em um bairro rico da capital onde o almoço era por conta da empresa. E ali, tinha uma alimentação completamente diferente da que tinha em casa, mais saudável. Foi nesse momento em que ele entendeu que não fazia sentido sua família não ter acesso a esse tipo de comida e ter de enfrentar problemas de saúde, como diabetes ou hipertensão, por exemplo. Desse questionamento e aprendizado surge a Saladorama, um negócio social que busca democratizar alimentação saudável no Brasil como um direito, não um privilégio. Hoje, a empresa discute soluções para isso em várias cidades País afora, como Florianópolis, São Luís e no Recife.
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Na divisa entre Recife e Olinda, ficava um matadouro. E em torno desse matadouro, desenvolveram-se comunidades como Beberibe e Peixinhos, onde vivem mais de 40 mil pessoas. A região é marcada pela luta histórica e vitoriosa de lideranças locais contra a instalação de uma estação de transbordo de lixo próximo ao rio nos anos 1980. Um dos resultados é o Movimento Cultural Boca do Lixo, que faz referência direta às marcas históricas do território: além da luta contra o lixo, o movimento ocupou o prédio do antigo matadouro e o transformou em “nascedouro”. É nesse lugar que Daniel Pereira se entendeu como sujeito político. Ele começou indo a shows de punk no “nascedouro” ainda adolescente, passou a trabalhar na Biblioteca Multicultural de Peixinhos criada pelo movimento, fez faculdade e atua em conselhos municipais de Recife e Olinda. E você, onde se entendeu como sujeito político?
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O bairro do Pina tem o metro quadrado mais caro do Recife e um dos mais caros do País. Contraditoriamente, entre becos e vielas escondidos por trás de condomínios de alto padrão, mais de 3 mil famílias vivem em casas de palafitas sobre o mangue. E nessas condições, um grupo de jovens usou a pichação e o graffiti para confrontar a especulação imobiliária e discutir direito à cidade. A partir das intervenções urbanas, o coletivo começa a aparecer e ocupar lugares de tomada de decisão. Hoje, o Centro Cultural Palaffite troca ideia de igual para igual nos espaços de poder. “Eles tentaram fazer uma política escondida. Mas, para mim, inovação política é base comunitária. É mandato coletivo. É recorte de todos os segmentos dentro de um mandato coletivo. É escutar as minorias e as populações negligenciadas dentro da comunidade”, aponta Stilo Santos, um dos responsáveis pelo Palaffite, que atua na criação de uma chapa para disputar a Assembleia Legislativa e a Câmara dos Deputados em 2018.
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Hoje, nós destacamos o Coletivo Afronte, que discute questões étnico-raciais em escolas públicas e universidades do Recife. Uma das integrantes é a poeta e mestranda em História Bell Puã, que cresceu em um núcleo familiar negro considerado de classe média alta na cidade – e foi nessas contradições do dia a dia, na discriminação racial sofrida da loja ao elevador, em que ela descobriu o que era política.
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Com quantos estereótipos um bairro se torna “perigoso”? Cidicleiton Zumba tá ligado que é nele que esse estereótipo vai grudar. Mas ele conhece a realidade local, sabe que a história é mais complexa do que apresenta o recorte de jornal, e comprou a briga para desmontar essa versão no Tururu, no município de Paulista, região metropolitana do Recife. A comunidade nasceu da doação de um terreno feita na década de 1980 pela Igreja Católica a 600 famílias desabrigadas. E foi na paróquia que muitas ações sociais e políticas se desenvolveram. Lá, por exemplo, Zumba dava seus passinhos de B.boy nas oficinas de hip hop. E foi onde teve contato com a comunicação comunitária ao escrever para o “Nois na Fita”, o zine do grupo de jovens. Ainda adolescente, ele e outros colegas quase foram processados ao denunciar no informativo a não-entrega de remédios por um posto de saúde local. “Daí, a gente viu que tinha que começar com um projeto de comunicação mais pesado”, conta ele. Aos 19 anos, Zumba e os amigos produziram o documentário “Tururu – Justiça, Paz e Vida”, que busca quebrar o estigma da violência e retratar a comunidade como um espaço de convívio comum igual a qualquer outro. Como resultado nasce o coletivo Força Tururu, que promove aulas técnicas e práticas sobre fotografia, comunicação e política para estimular a juventude a amplificar a sua voz.
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Lembra quando você teve contato com a política? No caso da Jessica Vanessa Santos, foi num curso de fotografia que rolou no Centro de Comunicação e Juventude (CCJRECIFE), uma iniciativa que acontece no Totó (bairro da periferia do Recife), forma jovens nas linguagens da comunicação e promove a participação delas e deles em espaços de discussão e tomada de decisão. Muito massa! Jessica se apropriou tão bem disso que passou a se envolver em outros coletivos, movimentos sociais e conselhos relacionados à juventude no município. Também já foi educadora do CCJ e hoje, aos 22 anos, é presidenta da organização. Ufa! Já acabou, Jessica?
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Rio de
Janeiro:
O que nós podemos fazer pela nossa comunidade? Em 2001, jovens envolvidos em trabalhos sociais do Complexo do Alemão (na zona norte do Rio) se reuniram e criaram o Instituto Raízes em Movimentos, que surge inicialmente para trabalhar a questão ambiental, promover atividades esportivas e ações para a educação e cultura. Muitos também ingressaram no ensino superior, por meio de parcerias entre a organização e universidades. Do Instituto, surgiram novos agitadores locais, que movimentam a cena literária, a mídia livre e a participação popular. Renato Oliveira Lima é uma dessas pessoas que aprenderam na convivência e nos projetos do Raízes em Movimento. E, descrente na mudança a partir do Estado, ele acredita que é de iniciativas da sociedade civil – como essa – que deve ocorrer a transformação social.
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Lucia Cabral nasceu no interior da Paraíba em 1967 e chegou ainda recém-nascida ao Rio de Janeiro, com seis meses de idade. Em busca de uma vida melhor, seus pais se fixaram no Complexo do Alemão, onde ela viveu uma infância feliz. O pai de Lucia sonhava vê-la professora, enquanto ela própria queria ter uma escola. Aos 12 anos, ela já escrevia cartas de nordestinos para seus parentes na terra natal e começou a alfabetizar alguns deles. Em 1986, transformou sua casa em uma escolinha e não parou mais. Desde então, atuou em diferentes projetos como articuladora, educadora, coordenadora, promotora de saúde… Até que, em 2008, deu início ao Educap (Espaço Democrático de União Convivência Aprendizagem e Prevenção) com outros jovens da área da saúde em uma sala de sua própria casa. No ano seguinte, um canteiro de obras localizado no Campo do Sargento tornou-se então o novo endereço da ONG. Com uma série de parcerias com empresas privadas e o poder público, hoje o Educap é uma das principais organizações que atuam pela garantia de direitos humanos no Alemão. E Lucia atribui isso à possibilidade de contar com a participação de muitas pessoas nos processos da organização.
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Victor Cantuária, de 22 anos, se entendeu um sujeito político ainda na adolescência. Ele fazia parte de um grupo de dança em sua cidade natal, Duque de Caxias (na Baixada Fluminense), em que era provocado a pensar seu corpo de dançarino no território. A retomada de sua atuação política ocorre quando entra na faculdade para aprofundar os conhecimentos de dança. No ensino superior, encontra outras pessoas negras, periféricas e bolsistas que pensavam em como dar um retorno do conhecimento adquirido para o próprio território – no caso, a Zona Norte do Rio. Assim nasce o Favelab, um coletivo de audiovisual que hoje tem 18 integrantes e tem como objetivo construir uma narrativa sobre as favelas em contraposição à da mídia hegemônica. Com ações culturais, entrevistas, documentários, videoclipes e por meio do contato direto com as práticas artísticas culturais periféricas, o Favelab pretende fomentar os diferentes tipos de demonstração artística no espaço urbano.
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A paraibana Regina Tchelly, 36 anos, estava acostumada a aproveitar os alimentos que sobravam em sua terra natal. Era sobra que virava ração para os animais, era casca que plantava no quintal… Mas quando se mudou para o Rio de Janeiro e percebeu que o desperdício era muito comum, ela viu que precisava agir. Depois de trabalhar 11 anos como empregada doméstica, decidiu iniciar seu próprio projeto de vida. Na favela da Babilônia, zona sul da cidade, juntou um grupo de mulheres para pensar alternativas de reaproveitamento de cascas de melancia. Para Regina, comida é um ato político pois muda hábitos familiares, faz refletir sobre o desperdício e o estímulo contínuo ao consumo em vez do reaproveitamento. Hoje, seu projeto Favela Orgânica atende 65 pessoas por semana, entre crianças e adultos, e tem como objetivo modificar a relação das pessoas com os alimentos, evitar o desperdício, cuidar do ambiente e combater a fome de forma prática, a partir do Ciclo do Alimento: Consumo Consciente, Compostagem Caseira, Hortas em Pequenos Espaços e Gastronomia Alternativa. “A gente tem um poder nas mãos de transformar sem precisar tirar sangue, sem precisar fazer as pessoas chorarem”, diz ela.
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Veruska Delfino viveu no interior do Maranhão até os 09 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Na Zona Sul da cidade, começou a fazer teatro em uma ONG e aprendeu com seu professor Marcus Faustini a vincular a arte com o trabalho social nos territórios. Hoje, aos 29 anos, ela trabalha na Agência de Redes Para Juventude – organização criada por Faustini em 2011 com objetivo de potencializar jovens moradores de favelas a transformarem ideias em projetos de intervenção. “Se a gente não colocar essa galera para serem ativos dentro desse debate, o dano de uma geração que a gente vai ter daqui a pouco vai ser gigantesco”, explica Veruska. Porém, com os retrocessos acontecendo em velocidade cada vez mais rápida, chegou o momento de intensificar essa ação. Assim surge no ano passado o ciclo Todo Jovem é Rio, em que 13 jovens de diferentes comunidades da cidade, de diferentes perfis e que já estão envolvidos na militância recebem formação em direito à cidade, mobilidade urbana, mobilização entre outros com objetivo de levar esses debates a quem tá fora da “bolha”. Cada jovem desse mobiliza outros quatro anfitriões em sua comunidade – sejam eles da igreja, do baile, do cursinho pré-vestibular -, e esses juntam mais uma galera em suas próprias casas. “Por que é dentro da casa? Porque a gente quer aproximar esse jovem da narrativa política e não daquela velha fotografia dos políticos que a gente tem”, explica Veruska.
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Final da ditadura militar, Rio de Janeiro. No Colégio Pedro II, André Fernandes e os colegas recriam o grêmio estudantil. Esse momento marca a atuação política do adolescente, que depois disso ingressou na Marinha como fuzileiro naval, largou da carreira militar para atuar nas comunidades como missionário de sua igreja evangélica e, no trabalho direto com a imprensa, percebeu a demanda e o potencial da comunicação comunitária para emancipação das favelas. O sonho se concretizou em oito de janeiro de 2001, quando André e outros colaboradores colocaram no ar o site da Agência de Notícias das Favelas (ANF), que hoje é uma organização e tem também um jornal impresso com tiragem de 50 mil exemplares. A ANF tem o objetivo de estimular a integração e a troca de informações entre as favelas e melhorar a qualidade de vida da população – e isso passa inclusive pela escolha dos representantes na institucionalidade. “Inovação política é a conscientização de toda a população mais pobre em quem eles devem votar”, aponta.
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Samy Brasil já fazia contestação social com a banda Black Music. E em 2013, quando começaram a fazer o baile Black Bom, na Pedra do Sal, região portuário do Rio, souberam do Cais do Valongo – um verdadeiro cemitério onde os corpos de africanos escravizados que não sobreviviam à travessia do Atlântico eram jogados ao chegar no porto mais movimento do tráfico negreiro. E ali também conheceu heróis da resistência negra, se integrou em movimentos e começou a participar de seminários… Como efeito disso, o baile se transformou no Instituto BLACK BOM, que ocupa um espaço na Lapa e tem como objetivo desenvolver empreendimentos negros e periféricos da capital fluminense.
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Teste rápido: você entende o que parlamentares, ministros, juízes estão falando? E pesquisadores das universidades? “Eu me via como uma pessoa que queria mudar as coisas, mas não via isso como militância. Eu percebia isso, eu sentia essas contradições, acho que já era militante feminista mas não entendia isso”, lembra a carioca Daniella Monteiro. Ela viveu até os 12 anos no Morro do São Carlos (Estácio, região central do Rio de Janeiro) e sempre soube que algo tava fora de ordem. “Cresci como qualquer criança de favela que, não por querer, naturalizou a violência do dia a dia. A gente naturaliza uma série de coisas”, lembra ela. Depois, a família comprou uma casa fora do morro, onde ela continuou sabendo que tinha algo que não era pra ser assim. Era a única criança negra da rua, onde até as brincadeiras eram diferentes. O contato com a política – e com todo esse linguajar complicado – foi acontecer de fato na faculdade, quando ela iniciou o curso de Ciências Sociais na UERJ e se envolveu no movimento estudantil. Hoje, Daniella atua para transpor a linguagem das ruas nos espaços de poder e buscar garantir direitos aos quais ela teve acesso mas outras mulheres e jovens negros de favelas continuam sem ter. Por isso, pretende se candidatar a deputada estadual nas eleições deste ano. “A gente não pode recuar. A gente tá em marcha, avançando um passo de cada vez”.
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Fala Roça
O jornal impresso é um veículo de comunicação que aborda questões do dia a dia da maior favela do Rio de Janeiro, localizada na zona Sul da cidade, habitada por moradoras e moradores de origem majoritariamente nordestina. E o responsável por isso é um cria da comunidade: Michel Silva, de 24 anos, filho de auxiliares de serviços gerais. Ligado no movimento desde pequeno, Michel pegava o jornal que o pai trazia do trampo em um condomínio para acompanhar as notícias. Foi numa dessas em que ele sacou que o modo de vida de quem estava no asfalto era muito, muito diferente de quem vivia no morro. Com um computador com 256MB de memória e um crachá improvisado de “imprensa comunitária”, ele passou a cobrir os acontecimentos do bairro – e a ser reconhecido por isso. Dos eventos culturais ao desaparecimento do pedreiro Amarildo, lá está o Fala Roça. E neste ano de votação, ele mapeia as candidaturas das favelas e torce para a eleição de jovens negros cientes da conjuntura política do País. “Eu tô esperançoso de que vamos ter uma série de candidaturas novas, rostos desconhecidos, e acho que o papel da imprensa é mostrar quem quer mudar a política atual”, diz ele. “A transformação vem da resignação do povo”.
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Pensa naquela pessoa que arrasta meio mundo atrás dela, ajeita daqui e dali e que faz a parada acontecer. Pensou? Na Santa Marta, uma favela localizada em Botafogo (na rica zona sul do Rio de Janeiro), Sheila Souza é uma das pessoas que têm esse perfil. Da infância pobre em recursos financeiros mas rica em vivências, ela trabalha para criar possibilidades de mudança onde vive e a partir do que esse ambiente tem a oferecer de soluções, ciente de que o Estado como é hoje não vai entregar o que almejamos gratuitamente. “O que a gente precisa é articular pra potencializar outras ‘Marielles’”, diz ela, em referência à Marielle Franco, vereadora carioca executada com seu motorista Anderson Gomes em março de 2018. “Podem ser mulheres, homens, mas que tenham essa força de representatividade real”. Turismóloga de formação, ela acumula experiência desde 1992 com turismo comunitário na favela – o que ela chama de “ações de base”. E desde 2010, a Brazilidade é um negócio social formal que promove conexões para ajudar a comunicar a cultura da favela, suas representações naturais, históricas e sociais, diminuindo as barreiras invisíveis entre morro e asfalto.
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A Rede Umunna é formada por mulheres negras que pesquisam e promovem a presença de mulheres negras na política institucional. O trabalho da Umunna envolve formação política para mulheres negras, reposicionamento de temas na agenda pública e pesquisas centradas em dados. Neste ano eleitoral, a Umunna realiza a campanha #MulheresNegrasDecidem com o objetivo de qualificar o debate da subrepresentação das mulheres negras na política do Brasil.
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O data_labe é um laboratório de dados e narrativas na favela da Maré – Rio de Janeiro. A equipe é composta por jovens moradores de territórios populares que produzem novas narrativas por meio de dados. No centro dos projetos desenvolvidos está a questão do imaginário construído sobre a cidade e seus habitantes.
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São Paulo:
Pense rápido: onde está a população trans? Diante da ausência de pessoas transgêneras, travestis e não binárias nos bancos das universidades, um grupo originalmente da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) se reuniu para dar aulas e preparar uma população historicamente marginalizada para ocupar a academia e outros espaços. Entre idas e vindas, conseguiram parcerias com o Centro de Referência da Diversidade da Prefeitura de São Paulo para pagar a passagem, e com a ONG Ação Educativa, onde de segunda a quinta realizam aulas noturnas e ações culturais com esse público. Para além da formação, hoje o Cursinho Popular Transformação constitui uma rede de solidariedade, com apoio a coletivos LGBTs das periferias da cidade e indivíduos em busca de hormônios a moradia após serem expulsos de casa pela família. Para Francisco Aldiney, ao menos por enquanto o Estado não dá expectativas de garantir os direitos plenos das pessoas trans, mas as iniciativas da sociedade civil têm a capacidade de provocar rupturas.
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José Soró nasceu no Mato Grosso. Mas foi em Perus, no Noroeste da cidade de São Paulo, que se fez um sujeito político. Nesse distrito localizado às margens da Serra da Cantareira, teve contato com a história dos Queixadas – como eram chamados os mais de 1,4 mil trabalhadores da Fábrica de Cimento Portland Perus, a maior da América Latina, que fizeram e ganharam uma greve que durou sete anos e pedia melhores condições de trabalho. O contexto histórico local influenciou a atuação da Igreja Católica, dos movimentos sindicais e as próprias escolhas de Soró em um período ainda sob ditadura militar. Depois de se filiar a um partido político, fazer o ensino superior, ele viveu 15 anos fora do País, voltou, se casou, teve filhos e decidiu retornar a Perus em 2005. Quando se mudou, encontrou outros “Queixadas”: a juventude negra articulada na Quilombaque Perus, uma associação cultural para a qual Soró foi convidado a contribuir. “Toda a lógica da Quilombaque é construir caminhos e estruturas de circulação, de fortalecimento da formação. Então, você forma um moleque aqui, mas tem um circuito para ele percorrer, se autoafirmar, inclusive essa ousadia da gente pensar que a gente tem que gerar renda e economia nesse circuito”, salienta ele. Hoje a Quilombaque tem duas ocupações culturais, se envolve em conselhos, na luta pela transformação da antiga fábrica de cimento em um centro cultural e campus universitário, nas decisões sobre o Plano Diretor e em elaboração de leis como a do Fomento à Cultura das Periferias. “Tem que valer a pena porque não é um ato benemérito, é um ato político e de enfrentamento”. Aos 54 anos, com muita experiência de vida e focado no desenvolvimento do território, Soró retoma o que os Queixadas pregavam: é preciso ter firmeza permanente. “A única oportunidade de você enfrentar a letalidade é que as pessoas locais existam”, completa.
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Vinicius de Morais pensa a política a partir da permacultura, conceito que valoriza os padrões e características de ecossistemas naturais aplicados à agricultura e uso de recursos – algo verdadeiramente sustentável. E o caminho para esse entendimento é longo. Vinicius lembra da avó, nascida em uma tribo indígena no Itaim Paulista (zona leste de São Paulo), parteira e benzedeira, que sempre trazia os saberes tradicionais para solucionar questões do dia a dia. Entre filhos, casamentos, idas e vindas a Ribeirão Preto, Vinicius também puxava da memória os ensinamentos da matriarca. Na capital do agronegócio, passou a questionar o modelo de produção alimentícia e de como os povos indígenas apontam para outro caminho, mais harmônico. Foi no interior que conheceu o Movimento dos Sem-Terra (MST) e iniciativas como a agrofloresta. Se mudou para Alto Paraíso de Goiás e, de volta à zona leste paulistana, ingressou num projeto de educação ambiental em um terreno cedido pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional (CDHU), onde finalmente conseguiu extrapolar os conteúdos abordados para falar de permacultura, economia solidária e desenvolvimento local. O Ponto de Cultura Socioambiental Quebrada Sustentável nasce dessas trilhas. Hoje, envolve mulheres da comunidade e gera renda com a prestação de serviços diversos. Vinicius também atua no Conselho Municipal de Meio Ambiente e trabalha pela reabertura de uma rádio comunitária no Itaim Paulista – tudo dentro dos princípios da permacultura.
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A primeira vez que Ronaldo Matos que tomou uma atitude para transformar sua realidade foi quando entendeu que a informação tem o poder de fazer com que as pessoas mudem seu modo de vida. Isso aconteceu quando ainda era criança, mas bateu forte mesmo quando Ronaldo já era adulto e trabalhava no setor corporativo. A inquietação foi o impulso para criar o Desenrola E Não Me Enrola, um coletivo de comunicação do Jardim Ângela que tem objetivo de retratar os fatos socioculturais das periferiasde São Paulo. Além da produção de conteúdo, o coletivo também realiza o “Você Repórter da Periferia”, projeto de educomunicação para jovens; o “Congresso de Escritores da Periferia de São Paulo”, que visa destacar a literatura periférica e seus escritores; e, desde 2017, gerencia o “Centro de Mídia e Comunicação Popular M’Boi Mirim”, um espaço aberto à comunidade que abriga um escritório colaborativo, estúdio multimídia de fotografia e vídeo, auditório para palestras e workshops e a redação do portal. O coletivo faz política, mas principalmente faz o meio de campo para quem busca informação para atuar politicamente também. “Para mim, a principal característica de quem faz política hoje são pessoas que estão abertas ao encontro, a entender outras narrativas, outros contextos, adquirir novos conhecimentos”, completa Ronaldo.
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O que fazer quando o Estado não cumpre sua obrigação de fomentar a cultura? No caso do Instituto Pombas Urbanas, o caminho foi ocupar esse espaço. O instituto foi criado em setembro de 2002 pelo grupo de teatro de mesmo nome e que é fruto de um projeto idealizado pelo ator peruano Lino Rojas. A atuação sempre aconteceu na Zona Leste, com Teatro em Comunidade, inicialmente em São Miguel Paulista – um bairro antigo, e fortemente marcado pela migração nordestina. Na busca por um espaço próprio, em 2004 o Instituto Pombas Urbanas encontra um galpão abandonado em Cidade Tiradentes, onde antes funcionava um supermercado. É neste espaço em ruínas, sem teto, que o grupo inicia um trabalho com a comunidade para projetos de formação artística e de público. Revitalizado, o então Centro Cultural Arte em Construção se tornou em um espaço autônomo que abriga eventos, espetáculos e cursos, além de um biblioteca comunitária com 10 mil títulos. Gerido pela própria comunidade, o espaço também abriga três grupos frutos de sua ocupação – Núcleo Teatral Filhos da Dita, Cia Teatral Aos Quatro Ventos e Grupo de Circo Teatro Palombar – e recebe mais de 25 mil pessoas por ano. “Nossa ação política está muito ligado ao fazer diário pra dar vida. Não é uma coisa que veio de um lugar ideológico, uma formação ideológica não, é uma prática mesmo”, explica Adriano Paes, 42 anos, um dos articuladores do espaço.
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Periferia de São Paulo. Anos 1990. Com índices de homicídio mais altos que países em guerra, o Jardim Ângela é “eleito” o lugar mais perigoso do mundo. É nesse território que Márcio Teixeira, o “Macarrão”, cresce com sangue nos olhos e ouvidos atentos no que diziam Racionais, Facção Central e outros expoentes do RAP que fizeram a cabeça da molecada da época. De uma quebrada isolada no Extremo Sul da capital paulista, ele atravessava as pontes para estudar, trabalhar, conhecer pessoas de outras periferias e compreender melhor por que essa realidade é assim. E de volta ao Ângela, trombou o DJ Bola e outros parças, que criavam eventos de hip hop. Nos corres para garantir equipamentos para as apresentações de rap, break e intervenções de graffiti, tinha muita negociação – seja para evitar tretas entre gangues até evitar problemas com a polícia. “A gente só queria se divertir em paz, mas se viu mediando conflitos”, lembra Macarrão. Dessa experiência nasce A Banca, uma produtora social cultural que promove artistas, realiza eventos e oficinas de hip hop em escolas e garagens da região, e discute soluções para os problemas da quebrada por meio do empreendedorismo. E leva esse conhecimento também para as partes mais ricas da cidade, para tentar alterar as estruturas que perpetuam as desigualdades. Mais do que ações culturais, A Banca cria pontes.
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Empreender é um ato político? Direto do Jardim São Luís, no Extremo Sul de São Paulo, Luís Henrique Coelho e Jennifer Rodrigues dão a letra: disputar e ocupar os espaços é a forma de pautar o que as populações periféricas demandam e provocar as mudanças necessárias. Por isso, eles criaram o Empreende Aí, que capacita, acompanha e busca apoios financeiros para jovens criarem os próprios negócios e gerar renda.
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Jardim Brasil, Extremo Norte de São Paulo, encostadinho na Serra da Cantareira. O meio do mundo é aqui. E aqui também fica a Casa no Meio do Mundo, um espaço coletivo que articula agentes culturais, comunicadores e agitadores periféricos interessados na transformação social a partir de uma perspectiva hiperlocal. E Ingrid Felix e Jesus dos Santos, integrantes do coletivo, têm ciência do que querem. Militantes do Movimento Cultural das Periferias, ajudaram a elaborar uma lei popular de Fomento à Cultura das Periferias, baseada no índice de desenvolvimento humano das quebradas paulistanas. A lei sancionada em 2016 destina mais recursos para manifestações culturais nas regiões menos assistidas pelo poder público. Essa experiência das ruas, das lutas e da disputa do orçamento público alimenta a Casa no Meio do Mundo, que articula e forma sujeitos políticos para seguirem na linha de frente para fortalecer o desenvolvimento local, de forma horizontal e com afeto como partes fundamentais desse processo.
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Chega no passinho dos maloka pra saber: desde 2012, a Liga do Funk usa o gênero cultural mais ouvido pela juventude das quebradas como ferramenta política e de inclusão social. Além de formar novos MCs, DJs, dançarinos e produtores, a organização promove debates sobre direitos das mulheres e população LGBT, sobre drogas e o Hip Hop, entre tantos outros. Chave!
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Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. E para manter a cultura viva desta expressão popular, o Instituto Cultural Samba Autêntico surge para pesquisar, cultuar e difundir a cultura do samba paulista, mostrando suas raízes para todos compreenderem a função política deste gênero musical.
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Imargem é mais do que a junção das palavras imagem e margem. Trata-se de uma iniciativa multidisciplinar, criada em 2006 na beirada sul de São Paulo às margens da represa Billings, no distrito do Grajaú, que propõe um olhar cuidadoso para a paisagem povoada da periferia, fomentando o pensar e agir diante das potencialidades e problemáticas da nossa sociedade, da margem à centralidade da cidade, ampliando os olhares e aguçar as sensibilidades de todos (educadores e participantes) para o espaço urbano. Espaço entendido como a paisagem povoada.
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Periferia em Movimento é um coletivo de comunicação sobre, para e a partir das periferias composto por jornalistas do Extremo Sul de São Paulo, com a missão de identificar, reconhecer e promover iniciativas de ativistas sociais, produtores culturais e demais agentes de transformação social das periferias.
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O projeto “Preta, vem de bike!” é uma ação do La Frida (cicloativismo negro) que une promoção da bicicleta com inclusão social, igualdade étnica e igualdade de gênero, visa levar a mobilidade urbana, além da orla, às periferias e comunidades quilombolas. São aulas de bike para meninas da periferia e mulheres quilombolas, estimulando a representatividade feminina na mobilidade urbana, ampliando as vozes das mulheres negras e ocupando espaços, sendo a bike um instrumento de empoderamento na sociedade. O “Preta, vem de bike” tem a função de envolver a bicicleta para além da mobilidade, permeiando o acesso a direitos básicos, processos de cura, auto-estima e sonhos.
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